Existem silêncios aguardando escuta que nem sempre conseguimos perceber: são as “vozes” mudas de muitas, muitas vítimas de políticas e sistemas que floresceram lá onde a corrupção, de comportamento ilícito individual, transformou-se em um “fenômeno” generalizado com alto custo social e econômico. Assim, aos primeiros silêncios somam-se outros, mas desta vez por cumplicidade, inclusive por parte de organismos internacionais.
A corrupção é um fenômeno oculto, difícil de expor, que percorreu a história da humanidade e hoje segue os caminhos da globalização; e, paradoxalmente, une países de Norte a Sul do mundo. Com seus interesses particulares, ela se insinua no governo da cidade e na política, mas não só: chega a se tornar um problema jurídico e cultural. Diante de sua disseminação, hoje em nível nacional e internacional, passamos a falar de “fenômeno” e de “mal social”, a ponto de afirmar: «É a mentira de buscar o lucro pessoal ou de grupo sob a aparência de um serviço à sociedade. É a destruição do tecido social sob a aparência do cumprimento de lei»[i], é roubar dos jovens o futuro e a esperança.
Fala-se de uma “cifra negra” elevadíssima, escondida às evidências, que se origina da mescla de interesses de vários tipos, os quais são alcançados por meio de trocas de favores e oportunismos. Manifesta-se com a lógica da troca ilícita entre um ato oficial ou de poder, público ou privado, e uma oferta ou fornecimento de dinheiro ou outras vantagens. Assim, o funcionário que exerce um cargo público se beneficiará com a exploração ilícita de seu cargo ou função, ou pode ser ele mesmo a incitar o cidadão comum a embolsar do dinheiro. Seu dever, para ser cumprido, terá assim um preço a ser pago ou pode chegar ao ponto de praticar, por dinheiro, atos contrários aos deveres de seu ofício. É um fenômeno que hoje chega à corrupção político-empresarial, devido às “relações comerciais” entre entes públicos e empresários privados.
O pacto corruptivo é difícil de ser apurado: não se realiza perante testemunhas, o silêncio envolve os acordos num “vínculo de omertà”[1] que nenhuma das partes tem interesse em fazer aparecer; os chamados subornos, pagos nas sombras e de forma oculta, não são rastreáveis. Mas se essa é a manifestação definida como “corrupção burocrática”, hoje a rede de “trocas” na forma de “negociação” é o lugar onde se perdem os critérios de honestidade e retidão, além da confiança. Além do mais, se os órgãos institucionais e políticos são considerados corruptos, também o cidadão não encontrará uma razão para deixar de alcançar o próprio interesse particular, com uma ferida profunda nas relações em todos os níveis.
Quem se beneficia e quem paga a conta
Com o avanço de uma economia de favores e influências, a própria relação entre cidadãos e instituições é consequentemente alterada, cria-se uma “região nebulosa”, onde até a criminalidade se enquadra nos negócios, aumentando o desperdício de recursos e custos públicos, até à realização de obras nunca concluídas, mas fonte de lucros consideráveis para quem domina a gestão. Como não pensar que a corrupção, que se tornou um sistema, acaba por sua vez gerando uma cultura de ilegalidade generalizada, subserviente a interesses pessoais ou partidários, a ponto de se tornar um “mal social”? Hoje o Papa Francisco adverte que se trata de uma laceração, uma ruptura das próprias relações, pilares da convivência. Na África chega-se a falar de pandemia social: a justiça, a atividade policial, toda a administração, o comércio estão comprometidos, enquanto os jovens e as mentes mais preparadas deixam a própria terra, com o aumento dos fluxos de migrantes rumo à Europa: “emigrar para ter esperança”. Mas qual é o preço?
Os recursos naturais, pensemos na República Democrática do Congo, são imensos: diamante, ouro, petróleo, urânio, cobalto, cobre, zinco, coltan, “estratégicos” para otimizar a tecnologia de telefonia celular e para a produção de material espacial, aeronaves, consoles de fibra óptica[ii]; além da agricultura com as exportações de café. No entanto, outros se beneficiam de tanta riqueza que, por meio de concessões e contratos de extração de minérios a multinacionais, entram em um jogo de interesses, compromissos, compensações, conchavos, de modo que a corrupção se torna um “sistema institucional”. Mas não faltam jovens que têm a coragem de fazer ouvir a sua voz para empreender um “rearmamento cultural”, necessário perante ao crescimento deste vírus, que rouba riquezas para multiplicar a miséria infinita!
É um sistema que gera exclusão, pois – no lugar de um autêntico serviço ao cidadão que, na sua necessidade a ser satisfeita através da ação pública ou privada, tem um preço a pagar, que mortifica a pessoa e a sua dignidade – nega os direitos, com vantagens que outros buscam indiferentes a qualquer critério de justiça.
Talvez as vítimas permaneçam invisíveis ou irrelevantes, tanto que alguns falam da corrupção como um crime sem vítimas. Mas como não considerar os inúmeros rostos? Na realidade, será se eles não são os cidadãos honestos, os pobres e os excluídos, os muitos esquecidos e abandonados, talvez à espera de uma prática a ser evitada, pelo reconhecimento do seu direito à alimentação, água, moradia, uma existência livre e digna? Quantas modalidades podem ser listadas em nível político, judicial, econômico!
No entanto, um fato não deve ser esquecido nem subestimado: não faltam ocasiões em que as pessoas também são induzidas, senão forçadas, à corrupção diante de um método, ou de um costume, que parece não oferecer alternativas. Quantas vezes obter um ato devido “tem um preço” para o cidadão desarmado, ou “esmagado” em sua própria necessidade de sobreviver. Em um “capitalismo doente”, pensemos na atividade de uma pequena/média empresa! Toda a vida social é muitas vezes viciada por uma burocracia opressora e injusta, que por sua vez é fonte de disparidades injustas, a ponto de romper as relações entre as pessoas, alterando as regras do mercado e do trabalho.
Quais são as ferramentas opositoras?
O direito não está ausente e não falta na luta contra a corrupção, até mesmo em nível internacional, normas e convenções: já em 1997, a Convenção da OCDE, assinada em Paris, sobre a luta contra a corrupção de funcionários públicos estrangeiros no contexto das international business transactions (transações comerciais internacionais); a Convenção de Mérida, adotada em 31 de outubro de 2003 pela Assembleia Geral da ONU, conhecido como UNCAC – United Nations Convention Against Corruption (Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção), que trata também da corrupção interna em vários países, e apela para a sua incriminação de várias formas. Intervenções na esfera da União Europeia, mas também do Conselho da Europa, com as duas Convenções adotadas no campo penal (27.01.1999) e no campo cível (4.11.1999), que preveem um mecanismo de verificação confiado ao Group of States against Corruption (Grupo de Estados contra a Corrupção – GRECO), composto por representantes dos Estados-membros. Afirma-se fortemente a ameaça representada pela corrupção com a proeminência do direito, própria democracia, os direitos humanos perante aqueles que abusam de seu poder ou o exploram em proveito ou vantagem pessoal ou de terceiros. A organização não governamental Transparency International foi criada em 1993 e se dedica em nível global ao combate à corrupção, medindo sua percepção (CPI) no setor público e na política em 180 países do mundo.
O que está faltando? Se, como afirmou o historiador argentino León Pomer, o «mundo da corrupção é um mundo cultural», também a legalidade deve se tornar cultura, um valor de convivência, no respeito comum pelas regras dos cidadãos e governantes; uma legalidade para a proteção da pessoa, a busca do bem comum. O jurista Gustavo Zagrebelsky[iii] explica que existe um «dever como resposta a um apelo à responsabilidade em relação à condição dos próprios contemporâneos e em relação àqueles que devem poder vir depois de nós. Os deveres para com os contemporâneos são deveres de justiça; os deveres para com aqueles que nos sucederão são deveres para com a humanidade». Talvez hoje não seja mais suficiente denunciar uma “falcatrua” econômica e política, é preciso entrar na “ferida” que gera degradação e “regenerar” o tecido social.
A palavra ao cidadão
Ramόn Soriano escreve: «A chave para a mudança está mais nas mãos do cidadão do que nas de seus políticos»[iv]. Mas existe hoje um modelo a propor perante o risco de muitos se deixarem corromper?
O presidente dos EUA, John F. Kennedy, afirmava: «Não se pergunte o que seu país pode fazer contra a corrupção, mas o que você pode fazer contra ela». Diante de um flagelo social que vai até à “fraude da democracia”, é necessário renovar as relações desde a dimensão individualista à dimensão solidária.
Outros são os modelos culturais:
– cultura de serviço, para superar interesses particulares e de grupo;
– cultura da fraternidade, para relações inclusivas e pleno reconhecimento da dignidade do outro;
– cultura da prevenção, trabalhando pelo bem comum para evitar favores e parcialidades.
Quase como luzes no fim do túnel, novos desafios nos aguardam:
– transparência, em uma relação de reciprocidade entre Administração Pública e cidadãos destinatários da sua atividade, sobre a qual é possível exercer o devido controle;
– Imparcialidade, numa relação sem privilégios e preferências;
– lealdade e competência, para formar nos estudos jovens que saibam reconhecer a primazia da lei como instrumento de igualdade e liberdade num horizonte de comunhão na convivência.
Começa por aqui a construção daquele NÓS que gostaríamos que morasse em nossas cidades e que, ao tecer uma rede de relacionamentos, contém em si a capacidade de renová-las.
Até mesmo uma pandemia pode nos tornar melhores, se tivermos a coragem de abandonar toda indiferença e nos deixarmos questionar por aquelas palavras ditas por Chiara Lubich na coletiva de imprensa no auditório Calvin, em Genebra, em 25 de outubro de 2002: «o futuro do mundo, sua capacidade de progredir para encontrar soluções aos seus conflitos, às suas crises, depende unicamente da consciência dos indivíduos e do comprometimento das pessoas. Não podemos contar apenas com as instituições, mas devemos oferecer, através das instituições, momentos, ocasiões para poder desenvolver essas convicções».
Um compromisso colocado em nossas mãos, que o Papa Francisco nos confirma hoje: «Nós, cristãos e não cristãos, somos flocos de neve, mas se nos unirmos podemos nos tornar uma avalanche; um movimento forte e construtivo. Eis o novo humanismo […], é preciso a cooperação por parte de todos segundo as próprias possibilidades, os próprios talentos, a própria criatividade»[v].
Adriana Cossedu
[1] Omertà é um código de honra que dá importância ao silêncio, a não cooperar com as autoridades e a não interferir nas ações ilegais de outros. Fenômeno mafioso que se originou e continua a ser comum no sul da Itália, onde o banditismo e a máfia (como a Ndrangheta, Camorra, Cosa Nostra, e Sacra Corona Unita) são fortes e dominadoras.
[i] Cf. B. Forte, Corruzione, la menzogna che ruba il futuro ai giovani, in Il Sole 24ore, 25 de junho de 2017.
[ii] O estudo è de R. Takougang, E se la corruzione fosse la radice di tutti i problemi dell’Africa?, in Nuova Umanità, 228/2017, p. 51ss.
[iii] G. Zagrebelsky, Diritti per forza, Einaudi, Turim, 2017, p. 94. Para a citação que precede L. Pomer, cf. Il costo della corruzione pubblica e privata. Le idee chiave, di Myrdal, Buchanan, Becker e North, RBA, Milão, 2017, p. 84.
[iv] Extraído de Il costo della corruzione pubblica e privata, cit., p. 136; e ivi, p. 13, a citação de J. Kennedy.
[v] Assim disse o Papa Francesco, Prefazione in P.K.A. Turkson – V.V. Alberti, Corrosione. Combattere la corruzione nella Chiesa e nella società, Rizzoli, Milão, 2017, pp. 9-10.